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quarta-feira, 5 de maio de 2010

Inveja dos Hermanos

Quem não gosta dos argentinos me desculpem... mas o post abaixo ficou muito interessante. Vale a pena dar uma lida, por isto postei aqui em meu blog tbm.

Por Walter Hupsel*


Tenho inveja dos argentinos. Invejo a capital, com calçadas largas e de fácil circulação. Invejo a parrilla, os vinhos, o doce de leite. Invejo as livrarias e sebos, onde encontramos títulos preciosos que sequer existem em português. Até a semana passada isso era tudo que me vinha à cabeça num comparativo entre estes países irmãos tão diferentes. Agora os nossos magistrados me ofertaram mais um motivo para olhar para o sul com inveja: o modo como se encara a história. Lá eles não tem vergonha de escancarar suas feridas, abri-las para medicá-las.

Aqui, numa “cordialidade” espúria, fazemos questão de esquecer nosso passado, de pôr panos quentes, de fingir que nada aconteceu, nada que manche nossa reputação ilibada, nossa alegria inata. Nossa sociedade civil quer ser harmoniosa, pacífica e passar ao largo dos conflitos, quer ser cordata e conciliadora.

No dia 29 de abril, uma quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do judiciário e responsável, em última instância, pela palavra final sobre o conteúdo e validade de uma lei, julgou, por imensa maioria (7 x 2), improcedente um pedido da OAB para que se revisse a Lei de Anistia e desse um parecer sobre a sua extensão. No entender dos meritíssimos, a Lei da Anistia têm vigência e validade, e nos impede de processar aqueles suspeitos de, em nome do Estado ditatorial militar, torturar, estuprar, matar.

Com isso, garantimos a impunidade, a intocabilidade de pessoas que cometeram crimes durante a ditadura militar (1964-1985). De alguma maneira entenderam ser legal e legítima a lei de 1979. Como bem ressaltou Raphael Neves no seu blog, o STF agiu como tribunal político, sem Direito.

Na minha opinião, o STF é justamente isso, e sempre será. É a ultima ratio do ordenamento jurídico, que, por isso mesmo, não pode ser pura e simplesmente direito, tem que estar além dele. Longe de resolver a questão envolvendo a Lei da Anistia, a agrava.

Nós, defensores da revisão da Lei de Anistia, temos de admitir a derrota. E admitamos que foi uma derrota política. Vinte e cinco anos após o fim da ditadura militar, a maioria dos ministros acredita que todos os arbítrios, todos os crimes, sejam comuns, políticos ou de lesa-humanidade, devem ser enterrados numa vala comum, no esquecimento jurídico.

Por quê? Por que nossos excelentíssimos ministros julgaram a ação improcedente? Por que países que tiveram suas ditaduras, suas leis de anistia, conseguiram revê-las e nós não?

Não podemos achar essa explicação em 1979, quando da promulgação da lei. Estávamos num regime de exceção, com boa parte da sociedade civil amordaçada, com um Congresso tutelado, embora livre. A relação era completamente assimétrica e a negociação foi o meio encontrado para começarmos a andar pra frente. Era, então, a única saída possível, era uma não-opção. O compromisso de então surgia como uma migalha ao famélico, como uma pessoa que “livremente” troca seu trabalho por comida, por mera subsistência.

Quando o direito não nos protege de cláusulas draconianas, ao mais fraco resta conformar-se com o menor dano possível. Foi o que, taticamente, foi feito. Para tirar a mordaça aceitaram que a Oban, os monstros do DOI-CODi, aqueles que se compraziam tendo um corpo como objeto, fossem objetos da Lei da Anistia. Pergunto: Havia, naquele momento, outra opção?

Não se trata de retroagir uma lei, isso seria realmente impensável, seria dotar o nosso Estado de ainda mais poder. Caberia ao STF agora entender as circunstâncias, compreender a abrangência da Lei de Anistia e o momento e contexto nos quais foi criada. Entender que o sadismo dos agentes de Estado, quando davam choques nos testículos dos presos, não pode ser coberto por um falso perdão. Entender que, sob a mira de um revolver, entregamos a carteira por prudência, mas podemos pedir que nos devolvam os documentos. Entender, enfim, que a força cria o arbítrio, mas não o direito.

O compromisso político de então deveria ser politicamente julgado. E foi. Perdemos a oportunidade histórica. Sinalizamos que o Estado brasileiro pode tudo. Sinalizamos que os agentes do Estado podem “suicidar” uma pessoa, sem risco algum. Quem, agora, podemos culpar pelo fracasso?

Em primeiro lugar, o próprio STF que entendeu (?) que tortura e assassinato são crimes conexos, estando, portanto, previstos na Anistia. Que, fazendo julgamento político, jurídico e moral (não há como dissociar os três substantivos) achou legítima as ações dos porões da ditadura.

Em segundo lugar, a OAB, que, num erro tático, imaginou que o STF com esses ministros, alguns dos quais sofreram com a ditadura, seria progressista o suficiente para julgar a legitimidade do perdão aos torturadores. Julgada improcedente, não há mais possibilidade de uma nova ação neste termos. Teremos que nos conformar com isso.

Por último, e não menos importante, a nós mesmos. Nós que evitamos o confronto, o “ir às ruas”, a pressão política. Nós que queremos que as coisas permaneçam iguais para que fiquem iguais. Que nos conformamos e esperamos, sempre, pelo maná descer dos céus.

Tenho inveja, muita inveja, dos hermanos que foram à luta para punir seus torturadores, para investigar aqueles que deram vazão aos seus desejos mais sádicos, aqueles que, por puro prazer, fizeram coisas inomináveis.

Lá eles prendem seus torturadores, comem uma belíssima carne, bebem bons vinhos, e ainda passeiam por uma cidade amistosa, convidativa. Lá, onde eles não tem acarajé e realmente acreditam que há jogador melhor que Pelé. Tudo bem, os argentinos não são perfeitos.



*Walter Hupsel é colunista do Yahoo, doutorando em Ciência Política pela USP e Professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Faculdade Santa Marcelina. Nasceu em Salvador, torcedor doente do Esporte Clube Bahia e roqueiro até o fim. Walter Hupsel escreve a coluna Política on the Rocks quinzenalmente, às terças-feiras. O post acima: http://colunistas.yahoo.net/posts/1781.html

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"Se quiser que os outros sejam felizes, pratique a compaixão. Se quiser ser feliz, pratique a compaixão." Frase de Orkut